Homenagem póstuma à Tania Carvalhal, colega e amiga
Rita Terezinha Schmidt (UFRGS)
Conheci Tania Carvalhal em 1985 quando ela era a coordenadora de nosso programa de Pós- Graduação na UFRGS e me convidou a integrar o corpo docente. Na época, eu era professora de Literatura Norte-Americana e ela insistiu muito para que eu me filiasse à nova área, a de Literatura Comparada. Tania sempre tinha um jeitinho hábil e carinhoso de convencimento para agregar colegas ao comparatismo. Naquele ano de 1985 ela havia participado do XI Congresso da Associação Internacional de Literatura Comparada (ICLA) na Universidade de Sorbonne Novelle, Paris. E foi durante esse congresso do qual participaram alguns brasileiros, dentre os quais Antonio Candido, na época integrante do Conselho Executivo da ICLA, que nasceu a ideia de criar uma Associação Brasileira de Literatura Comparada. No ano seguinte, isto é 1986, Tania concebeu e organizou o 1º. Seminário Latino-Americano de Literatura Comparada que foi um ensaio para a criação da ABRALIC. Colegas ilustres participaram desse seminário em Porto Alegre: Eduardo Coutinho, da UFRJ, Silviano Santiago da PUCRJ, Ana Pizarro do Chile, Beatriz Sarlo da Argentina, Margara Russoto da Venezuela, Jorge Schwartz da USP, e Valquíria Wey da Universidade Autônoma do México.
A ABRALIC foi fundada oficialmente durante o I congresso da Associação, realizado na UFRGS em setembro de 1988. Como 1ª. Presidente, a atuação de Tania foi particularmente importante, inclusive na escolha do tema do evento "Intertextualidade e Interdisciplinaridade". Nomeio alguns nomes importantes que aqui estiveram. Eduardo Coutinho da UFRJ, Luiz Costa Lima da PUCRJ, Silviano Santiago da PUCRJ, Ana Pizarro da Universidade de Concepcion, Chile, Beatriz Sarlo da Univ. de Buenos Aires, Lisa Block de Behar da Univ. de Concepción do Uruguai, e Daniel-Henry Pageaux da Sorbonne Novelle, Paris III, entre outros. Tenho certeza de que a criação da ABRALIC marcou um momento de transformação nos estudos literários latino-americanos, particularmente nos estudos de literatura nacional. Isso significa dizer que o estudo de fontes e influências com relação a matrizes européias deu lugar para um novo perfil metodológico com o surgimento de novos instrumentos teóricos diante do multiculturalismo e hibridismo, e de discussões em torno de memória cultural, mediações, cânones e contextos.
No período de suas duas gestões como diretora do nosso Programa de Pós-Graduação, Tania também coordenou um Programa de Literatura Comparada na rubrica CAPES/Coffecub, um acordo acadêmico bilateral, Brasil/França. Esse foi o primeiro projeto na área de literatura aprovado pela Agência Governamental Brasileira para o Ensino Superior nos anos 80. Com relação ao nosso PPG, Tania concebeu os programas de mestrado e de doutorado em literatura comparada que iniciaram em 1991. Lembro que houve muitas reuniões para organizar os programas e que quando foram finalmente aprovados pelo Conselho de Pós-Graduação da Universidade, Tania ficou exultante. Nesse cenário, ela plantou as sementes do comparatismo pelo país afora ao orientar e supervisionar um número expressivo de alunos de mestrado e de doutorado que vieram de várias regiões do país, e se tornaram comparatistas em universidades do país.
Eu não fui aluna da Tania e como colega ao longo dos anos ouvi muitos comentários de seus alunos, o quanto eles a admiravam , e o quanto suas aulas eram memoráveis. Quero realçar o ensino porque se tratava de uma atividade pela qual ela tinha um forte comprometimento afetivo e com a qual ela sentia um grande prazer. É preciso também lembrar que Tania colocava seu entusiasmo, energia e paixão tanto em grandes projetos quanto em pequenos, o que incluía convencer mais um aluno ou aluna a vir para a área de comparada. Ela era uma mulher de visão e sabia que estava plantando para o futuro. Ao mesmo tempo em que se movimentava sem descanso no circuito acadêmico, dando palestras e cursos em diferentes geografias, no país e no exterior, também cuidava de seus alunos orientandos. Falava sobre novos campos do pensamento teórico, discutia com eles seus projetos de pesquisa, abrindo janelas e portas do circuito acadêmico para todos e todas que caiam na rede de sua alegria e de seu charme. Uso literalmente o termo "charme" e quem a conheceu um pouco sabe o que quero dizer.
Foi Tania que me levou pela mão para participar da Associação Internacional de Literatura Comparada, a AILC (ICLA) da qual foi presidente no período 2004 a 2007. Graças a ela, fui eleita duas vezes para o Comitê Executivo, constituído de 28 membros cujo papel é assessorar a diretoria, discutir assuntos pertinentes da associação como mudanças estatutárias, escolher propostas de países para sediar congressos, etc. O seu falecimento precoce repercutiu muito entre todos que a conheceram, tanto entre nós quanto na esfera da ICLA. Hoje o pioneirismo de Tania e seu legado já fazem parte da nossas histórias, a do PPG, a da UFRGS e a da ICLA.
Gostaria de abrir um parênteses para ilustrar o quanto a Tania zelava pelo projeto da literatura comparada. Tivemos outra colega e amiga que também nos deixou precocemente, e que integrou o corpo docente do nosso PPG. Seu acolhimento na área de literatura comparada foi obra da Tania. Estou falando da profa. Márcia Hoppe Navarro, que conheci quando iniciamos o curso de Letras em 1971 e nossa amizade, desde o primeiro ano da graduação, se consolidou na forma de uma sororidade que perdurou até os últimos dias de sua vida. Nos anos 80, a Márcia já havia completado seu doutorado em Literatura Latino-Americana realizado no College University, Universidade de Londres. Mas naquela época não havia concurso nas universidades federais. Tania sabia como encontrar os caminhos burocráticos e administrativos na Reitoria e era muito convincente em seus argumentos. Graças aos esforços da Tania a Márcia foi admitida como docente pesquisadora e enriqueceu muito o PPG, com suas aulas, orientação de mestrado e doutorado, pesquisa e produção, com destaque para escritoras latino-americanas. Seu trabalho inaugurou aqui no sul e por que não dizer em outras regiões do país, o interesse pelas escritoras da América Latina. Hoje não tenho dúvidas de que a Márcia foi uma pioneira e a maior especialista dos estudos sobre escritoras hispano latino-americanas no país.
Para encerrar essa homenagem à querida Tania Carvalhal quero acrescentar que ela sempre foi uma colega e amiga alegre e generosa, uma professora sempre entusiasmada que abriu novos caminhos para muitos colegas e alunos, hoje professores em várias universidades do país. Lembro de um dia muito especial em que Tania me confessou ter sido um dos dias mais felizes de sua vida. O dia foi 19 de agosto de 2005 quando ela recebeu o título de professora emérita de nossa universidade. Naquele dia ela estava iluminada de alegria por ter seu trabalho reconhecido pela sua alma mater. No mesmo dia ela me enviou uma mensagem, agradecendo pela minha fala no Conselho Universitário, dizendo que eu havia feito dela uma viajante com uma certa trajetória que havia sido mais bonita e valiosa em razão da forma com que eu havia narrado. Hoje penso na minha querida colega e amiga como uma viajante com olhos radiantes de alegria que deve estar em algum lugar comparando estrelas.
REGISTRO DE UM DIÁLOGO NAS TRILHAS DO COMPARATISMO
Eduardo F. Coutinho (UFRJ)
Como muitas outras disciplinas acadêmicas, a Literatura Comparada sofreu, dos anos de 1970 ao presente, significativas transformações, passando de um estudo de caráter binário entre obras, autores e movimentos literários, restritos ao cânone da tradição ocidental, para uma reflexão mais ampla, aberta a todo tipo de expressão literária e cultural e a outras áreas do conhecimento, tornando-se em consequência um verdadeiro diálogo entre culturas. E é como tal, como um diálogo rico e instigante, que ela se erige hoje, definindo-se como uma disciplina que não se atém a fronteiras e cuja maleabilidade lhe faculta a capacidade de interrelacionar-se com tipos diversos de discursos e áreas distintas do saber. Ciente dessas transformações, a ABRALIC vem acompanhando a evolução da disciplina, e vem deixando seus registros nos Anais dos Congressos que se têm realizado a cada dois anos. Neste momento, em que a associação se encontra prestes a completar, com grande êxito, quarenta anos de sua idealização e fundação, relembramos com imensa satisfação os passos iniciais de sua criação, com o intuito de que eles não se percam nas fímbrias de nossa memória.
Desde a primeira metade do século XX, já se encontravam estudos de Literatura Comparada no Brasil, realizados por expoentes da crítica e da teoria literária no país, como Antonio Candido, Afrânio Coutinho, Eugênio Gomes, Augusto Meyer e Tasso da Silveira, o último dos quais inclusive publicara, em 1964, um manual à maneira dos franceses com o título de Literatura Comparada, e a disciplina já era lecionada em algumas universidades brasileiras, como a Universidade Federal do Rio de Janeiro e a Universidade de São Paulo, tanto a nível de graduação quanto de pós-graduação. Mas o grande impulso que a área tomou data da criação da ABRALIC, e foi também a partir daí que a sua esfera de atuação se ampliou de tal modo, que chegou a ser identificada – pelo menos no nível da associação e a despeito de seu caráter de transversalidade que a distinguia desde o início dos estudos de literaturas nacionais ou produzidas em um mesmo idioma – com a área dos estudos de Literatura em geral.
A ideia de criar a ABRALIC surgiu em Paris, na Universidade de Sorbonne Nouvelle, em 1985, durante o XI Congresso da Associação Internacional de Literatura Comparada, a AILC/ICLA, existente desde 1955. Encontrávamo-nos lá Tania Carvalhal e eu circulando entre intensos debates sobre todos os aspectos relacionados ao comparatismo, desde questões mais específicas pertinentes à Narratologia, à Semiologia e à Estética da Recepção, à época em voga, até uma ampla discussão sobre a Tradução, a oposição entre o oral e o escrito e os diálogos de culturas, quando ela, dinâmica e empreendedora que era, lançou à queima roupa a proposta: por que não fundamos uma associação nacional de Literatura Comparada como as que temos visto aqui representadas e a vinculamos à AILC/ICLA? Do susto inicial, passei à reflexão e brindamos a futura realização na recepção de encerramento do Congresso, junto a outras duas participantes brasileiras, em tarde memorável sobre as águas do Sena.
A ideia, felizmente, não ficou em projeto. O objetivo comum – o desejo de propiciar, através de um intercâmbio mais dinâmico com os demais polos de estudos da disciplina, um desenvolvimento verdadeiramente eficaz do comparatismo no Brasil – e a confluência de áreas de atuação distintas, mas complementares – Tania transitava sobretudo pelas literaturas francesa e brasileira e eu pela brasileira e a hispano-americana, além da norte-americana que lecionara durante um tempo – foram responsáveis pelo resto da aproximação. De regresso ao Brasil, mantivemos contato e, após ampliarmos o grupo fundador com a inclusão de outros pesquisadores da matéria, de pontos diferentes do país, fundamos, a 9 de setembro de 1986, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, a Associação Brasileira de Literatura Comparada, a ABRALIC. E Tania, sua primeira presidente, organizou, dois anos depois, o primeiro congresso da Associação, também na UFRGS, onde estiveram presentes, além de um número expressivo de intelectuais brasileiros, quase todos os principais integrantes da então diretoria da AILC/ICLA.
As dificuldades na fase de implantação da ABRALIC foram evidentemente muitas, mas os esforços foram compensados. Hoje, a associação, que conta com um número extraordinário de sócios entre professores e pesquisadores de Literatura, é o principal órgão de estudos literários comparatistas no Brasil, e o seu raio de atuação já alcançou amplas esferas, tendo constituído, inclusive, estímulo para a criação de novos cursos de pós-graduação na área. Suas atividades, nessas já quase quatro décadas de existência, foram incontáveis, destacando-se, sobretudo, a realização de dezoito Congressos Internacionais de grande porte (Porto Alegre, Belo Horizonte, Niterói, São Paulo, Rio de Janeiro, Florianópolis, Salvador, Belo Horizonte, Porto Alegre, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, Campina Grande, Belém, Rio de Janeiro, Brasília, Porto Alegre, Manaus), seguidos da publicação dos respectivos Anais, que constituem itens indispensáveis na bibliografia do comparatismo no Brasil. Além disso, há que acrescentar-se a realização de diversos Colóquios e Seminários, que se transformaram, dada a sua dimensão, em outros Congressos Internacionais, e a criação de dois veículos sumamente importantes de divulgação: o Boletim Informativo Contraponto e a Revista Brasileira de Literatura Comparada, de qualidade reconhecida.
A trajetória da ABRALIC em seus vinte primeiros anos foi amplamente marcada pela atuação de Tania Carvalhal. Com vistas ao fortalecimento dos laços entre a ABRALIC e a AILC/ICLA, no seio da qual ela havia surgido e à qual foi imediatamente vinculada, Tania passou a integrar o Conselho desta última e, em seguida, foi Vice-Presidente e, finalmente sua Presidente, tarefa que infelizmente ficou inconclusa devido ao seu falecimento precoce em 2006, meses antes de eu realizar, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, o XVIII Congresso da Associação, o primeiro a ocorrer na América Latina. No âmbito da AILC/ICLA, onde exercemos diversos cargos – eu também tive a honra de ser membro do Conselho e posteriormente Vice-Presidente – e oscilamos frequentemente entre ondas de entusiasmo e cautela, sua atividade foi infatigável, e cabe-me destacar em especial, com o olhar de testemunha, sua participação na criação de outras associações nacionais – a argentina, a uruguaia e a peruana – e a organização de colóquios e simpósios, com a presença sempre expressiva da associação e de figuras representativas do meio intelectual brasileiro e hispano-americano. Não seria demasiado acrescentar que os textos apresentados nesses eventos eram quase sempre publicados em Anais ou livros, após criteriosa seleção.
Nada mais justo, portanto, que, neste momento em que a ABRALIC está prestes a completar quarenta anos de sua idealização e fundação, e com um histórico altamente relevante, seja lembrada com louvor a figura de Tania Carvalhal, que se encontra indiscutivelmente relacionada a esta associação, fato que se evidencia também, além dos aspectos já mencionados, pela criação, em 2018, de um prêmio com o seu nome, que eu tive a honra de receber. Tal iniciativa constitui um sinal de reconhecimento, da parte de todos os professores e pesquisadores da área, pelo trabalho extraordinário realizado por esta grande pensadora, e atesta a vitalidade do campo de estudos a que ela se dedicou com afinco inigualável.