A ABRALIC tem a honra de publicar a fala do professor Dr. Roniere Menezes por ocasião da entrega do prêmio Tânia Franco Carvalhal À professora Dra. Eneida Maria de Souza no Congresso Internacional de 2021. Leia o texto na íntegra:

 

 

 

 

 

 

 

ENEIDA MARIA DE SOUZA: OS SABERES DA CRÍTICA

 

Roniere Menezes (CEFET-MG e CNPq)[1]

[1] Professor de Literatura Brasileira e Teoria da Literatura no CEFET-MG. É doutor em Literatura Comparada pela Faculdade de Letras da UFMG e realizou estágio pós-doutoral no PACC (Programa Avançado de Cultura Contemporânea) da Faculdade de Letras da UFRJ. A palestra foi proferida no Congresso Internacional da ABRALIC, na UFRGS, intitulado "Diálogos Transdisciplinares", no dia 08 de outubro de 2021. Na ocasião, a professora Eneida Maria de Souza recebeu o Prêmio Tânia Franco Carvalhal por sua contribuição à Literatura Comparada.


A costureira estilista

Boa noite a todos e a todas. Quero inicialmente cumprimentar o professor Gerson Neumann, presidente da ABRALIC e, por meio dele, cumprimentar toda a diretoria da entidade pelo excelente trabalho realizado no último biênio.

O professor Gerson Neumann e o professor Andrei Cunha convidaram-me para uma honrada e difícil tarefa: fazer uma homenagem à professora emérita da UFMG, ensaísta e bolsista de produtividade 1A do CNPq, Eneida Maria de Souza, merecidamente vencedora do Prêmio Tania Franco Carvalhal deste ano. Sinto-me honrado pelo privilégio de poder escrever um pouco sobre minha grande amiga e sempre orientadora Eneida. A confecção textual revela-se difícil porque a trajetória acadêmica da professora abre janelas para a escrita de um vultoso livro. De todo modo, tentarei, aqui, apresentar alguns dos importantes aspectos da produção intelectual da homenageada cujo percurso acadêmico funciona como inspiração para todos os que se dedicam à pesquisa, ao magistério e à escrita acadêmica no Brasil.

Assim como Mário de Andrade, um dos autores de sua predileção, Eneida é dona de um saber inquieto. Apaixona-se por tudo, por objetos diversos, sejam ligados à literatura erudita, à criação modernista, à canção popular, aos folhetos de cordel, ao artesanato, ao cinema, à fotografia, à filosofia, a textos teóricos. Estabelece inusitados cruzamentos entre os objetos. O trabalho sempre se faz de forma pausada, meticulosa.

Como costureira de talento, cria finas roupas. Nas atividades, avalia o tecido, a textura, a cor, escolhe o molde, corta o pano, faz alinhavos e pisa, com ritmo regular, o pedal da máquina. Interrompe a ação para observar o pesponto de modo mais próximo à vista e depois distancia-se um pouco para melhor perceber o caimento da peça. A modista viaja para acompanhar tendências, ir a feiras internacionais, observar o street style, aprender novas técnicas, conhecer talentos, apreciar relações entre arte e cultura, importar tecidos e tratá-los com percepções locais. Trai memórias apreendidas, mescla saberes diversos, inclui, nas produções, bordados nordestinos, estampas do Jequitinhonha, inventa novos cortes, novas costuras, cuida do acabamento. Assim monta sua coleção e realiza seus lançamentos. Com o trabalho minucioso de quem passa a linha pelo buraco da agulha sem perder de vista o contexto, as voltas do planeta, as reviravoltas do país, dissemina as obras que podem funcionar como máquinas de vestir, de morar, de viajar, peças a partir de onde se pode observar as modalidades artístico-culturais e as formas de vida do mundo ao redor. Assim, o trabalho cotidiano da costureira vai se transformando — pelos desenhos precisos da linha e pelos delírios flutuantes da imaginação — no trabalho de estilista. Como hábil costureira e artesã, e ao mesmo tempo estilista inventiva, Eneida Maria de Souza tem produzido marcantes modelos de análise e contribuído imensamente para o desenvolvimento da área de Teoria da Literatura, Literatura Comparada e Crítica Cultural no país

Segundo Letícia Malard, “a marca registrada dela como professora, pesquisadora e orientadora é o entusiasmo pela profissão, a disciplina e a responsabilidade, a segurança na fixação de objetos e metas. Seu lema é ‘podem contar comigo’” (MALARD apud ALKMIM, 2013).

Nascida em Manhuaçu, Zona da Mata mineira, desde cedo demonstrou interesse pela leitura. Incentivada pelos pais — a professora de português Maria da Conceição Carvalho de Souza, conhecida como Dona Lilita, e o Sr. Nudant Pizelli de Souza, empresário, fazendeiro e amante das letras e artes — leu toda a obra de Monteiro Lobato quando ainda criança. Os cursos primário e ginasial foram feitos na Escola Normal Oficial de Manhuaçu. Em Belo Horizonte, entre os anos 1960 e 1962, faz o curso clássico no Colégio Helena Guerra, de freiras italianas, e forma-se em Letras em 1966, pela UFMG. Em 1968, passa em concurso e começa a lecionar na mesma Faculdade, iniciando um trajeto que contribuiria imensamente para a transformação da instituição nas décadas seguintes, principalmente na área de pós-graduação em estudos literários.

Em 1975, Eneida conclui o mestrado em Literatura Brasileira pela PUC-Rio, onde amplia o seu círculo afetivo e intelectual. Defende, na instituição, dissertação intitulada A barca dos homens: a viagem e o rito, sobre a obra de Autran Dourado. No final da década de 1970, segue para a França onde defende, em 1982, tese de doutorado na Universidade de Paris VII — Jussieu — sobre Macunaíma, de Mário de Andrade, trabalho orientado por Julia Kristeva. O livro, produto da tese, intitulado A pedra mágica do discurso, foi publicado, pela Ed. UFMG, em 1988. Em 1999, sai a segunda edição, revista e ampliada. O trabalho estabeleceu novos parâmetros em relação à crítica sobre o autor modernista, sobre a ideia de autoria, plágio, intertexto, sobre os diálogos existentes entre cultura erudita e popular.

Contribuições acadêmicas

Entre as diversas contribuições de Eneida para a universidade, além do trabalho como professora e orientadora, podemos nos lembrar de seu empenho pela criação do doutorado na FALE-UFMG, em 1985, ação que contribuiu com a internacionalização da instituição.

Em 1989, Eneida juntamente com professores de Teoria da Literatura e de Literatura Brasileira decidiram criar, na Faculdade Letras da UFMG, por sugestão de Silviano Santiago e com apoio da então diretora da escola, Melânia Silva de Aguiar, o Centro de Estudos Literários (CEL). O órgão traz como um de seus objetivos propiciar condições para receber, preservar e fomentar pesquisas em acervos e bibliotecas, colocando-os à disposição da comunidade.

No mesmo ano, participa ativamente, ao lado de colegas da Faculdade de Letras, da criação do Acervo de Escritores Mineiros, com o intuito inicial de congregar pesquisadores e estagiários que pudessem analisar criticamente o corpus bibliográfico de Henriqueta Lisboa, Murilo Rubião e Oswaldo França Júnior, primeiros autores acolhidos pelo setor. O espaço museológico e arquivístico do Acervo de Escritores Mineiros está instalado na Biblioteca Central da UFMG e reúne cerca de 30 mil volumes, manuscritos, datiloscritos, correspondências, fotografias e objetos pessoais de autores e autoras importantes para a história literária e cultural do país. Além dos nomes citados, o local passa a cuidar dos acervos de Cyro dos Anjos, Abgar Renault, Autran Dourado, Fernando Sabino, Affonso Ávila, Laís Corrêa de Araújo, Adão Ventura, Carlos Herculano Lopes, Lúcia Machado de Almeida, José Maria Cançado, Octavio Dias Leite, Wander Piroli, entre outros. O ambiente possibilita diversas pesquisas e produções acadêmicas relativas à invenção literária, à noção de arquivo, à crítica biográfica e à memória cultural, áreas às quais Eneida tem dedicado seus projetos.

Em 1986, a pesquisadora contribui para a criação da ABRALIC, tornando-se sua segunda presidente, durante o biênio 1989-1990. Segundo nossa homenageada:

Ao aceitar a presidência da ABRALIC, pretendi dar prosseguimento aos princípios que nortearam sua primeira gestão, conduzida por Tania Franco Carvalhal, a quem coube a difícil tarefa de dar corpo à Associação e responsabilizar-se pelos seus primeiros passos e sua gradativa consolidação. Venho a exercer, nesse cargo, uma atividade que ultrapassa as fronteiras da instituição, impulsionando, em âmbito maior, a promoção do intercâmbio entre estudiosos das universidades nacionais e as condições para um diálogo com a cultura estrangeira. (...) esforcei-me por defender um espaço de reflexão e enriquecimento de experiências acadêmicas, bem como de sistematização do quadro teórico da disciplina. (SOUZA, 2012, p.119)

Após aposentar-se, a dinâmica pesquisadora ampliou sua produção acadêmica com a escrita de ensaios, organização e publicação de livros e revistas. Tendo continuado a orientar teses na Faculdade de Letras da UFMG, trabalhou como professora-visitante em diversas universidades brasileiras, como a UFBA, UERJ, PUC/Rio, UFJF, UFRN, UFC, UFRGS, além de universidades estrangeiras, como as de Nottingham (Inglaterra), Poitiers (França), San Andrés (Argentina). Entre os anos 2010 e 2014, atuou como professora na Pós-graduação da Faculdade de Letras da Universidade Federal de São João del-Rei como bolsista de Professor Visitante Nacional Sênior (CAPES).

Após aposentar-se, a dinâmica pesquisadora ampliou sua produção acadêmica com a escrita de ensaios, organização e publicação de livros e revistas. Tendo continuado a orientar teses na Faculdade de Letras da UFMG, trabalhou como professora-visitante em diversas universidades brasileiras, como a UFBA, UERJ, PUC/Rio, UFJF, UFRN, UFC, UFRGS, além de universidades estrangeiras, como as de Nottingham (Inglaterra), Poitiers (França), San Andrés (Argentina). Entre os anos 2010 e 2014, atuou como professora na Pós-graduação da Faculdade de Letras da Universidade Federal de São João del-Rei como bolsista de Professor Visitante Nacional Sênior (CAPES).

No período, orientou pesquisas, organizou colóquios e edições de livros, disseminando entre alunos e professores da cidade histórica mineira sua sabença, sua busca constante pelo aprendizado, sua fina escuta da voz do outro, sua alegria de viver. Posteriormente, voltou a oferecer concorridos cursos no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da FALE-UFMG, atividade que continua exercendo com grande dedicação.

Atualmente, entre várias atividades, Eneida atua como uma das coordenadoras do Minas Mundo, projeto que congrega pesquisadores do Brasil e do exterior visando à realização de leituras críticas sobre o modernismo brasileiro e ao estabelecimento de oficinas, palestras, exposições, eventos artísticos e publicações ligadas ao centenário do movimento.

Percurso crítico

Em seu percurso, a professora estabeleceu, nos anos 1960, investigações relativas ao Estruturalismo. A linha teórica a acompanha na criação de importantes trabalhos nos anos 1970. A partir desses estudos, percebe conexões existentes entre o Estruturalismo de Ferdinand de Saussure, a Antropologia estrutural de Claude Lévi-Strauss, a cultura popular e o discurso das minorias. Assim, linhas de pesquisa e aparatos conceituais são percebidos não como meio de criação de circuitos fechados a poucos, mas como formas de alcançar outras margens. Em todo o processo estão presentes o método, o cuidado com as afinidades e as diferenças, as aproximações com outros territórios. Segundo a estudiosa: “A Antropologia, ao descentrar o eixo dos valores etnocêntricos, propicia ainda a quebra de hierarquia dos discursos e aguça o interesse pela valorização de textos considerados marginais pela cultura oficial (SOUZA, 2012, p. 53). Após estudos referentes ao Estruturalismo e à Antropologia, a pesquisadora envereda-se pela Psicanálise e pela Semiologia, desenvolvendo singulares argumentações na área da Teoria Literária e Literatura Comparada.

Em cada espaço a que chega, a autora vivencia-o com vagar, faz seus reconhecimentos de terreno, realiza seus mergulhos críticos. Tece articulações com teóricos fundamentais do século XX, em especial os franceses ligados ao estruturalismo, ao pós-estruturalismo e à história da arte, pensadores da Áustria e da Alemanha participam do conjunto. Desse modo, traz para sua alçada autores como Lévi-Strauss, Roland Barthes, Antoine Compagnon, Sigmund Freud, Jacques Lacan, Michel Foucault, Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Julia Kristeva, Aby Warburg, Georges Didi-Huberman, entre outros. Quanto ao corpus teórico-crítico brasileiro, Eneida revela-se herdeira dos ensinamentos recebidos de mestres como Maria Luiza Ramos, Silviano Santiago, Luiz Costa Lima, Affonso Romano de Sant’Anna e Dirce Cortes Riedel. Algumas obras desses autores sempre estão ao lado de nossa professora, inclusive devido a amizades de vida inteira; outras produções são revisitadas às vezes, a contrapelo; de algumas obras ela se distanciou devido a novas abordagens que surgiram a partir de seu modo ímpar de observar os materiais de pesquisa. Nos últimos tempos, Eneida aproxima-se bastante do campo teórico latino-americano, de vertentes críticas norte-americanas e portuguesas, além de estabelecer leituras de autores indianos, jamaicanos e brasileiros contemporâneos que atuam a partir de espaços fronteiriços menos hegemônicos e ligados a debates do presente.

Com o fundamental livro Traço crítico, de 1993, Eneida revisita diversas pesquisas feitas até então. O volume funciona como uma das portas de entrada para quem deseja iniciar-se nas diversas, mas sempre bem elaboradas questões propostas pela autora.

O trabalho com intelectuais e a era JK gerou, além de outras produções, o livro Modernidades Tardias, de 1998. Sobre Jorge Luís Borges, escreveu, em 1999, O século de Borges. Em O risco da memória, de 2004, a ensaísta debruça-se sobre a criação do médico, desenhista e memorialista modernista, Pedro Nava. Em breve sairá a edição crítica de Beira-mar, organizada pela autora. Sobre pesquisas em arquivos e acervos, Eneida organizou, juntamente com o professor Wander Miranda, os livros Arquivos literários, em 2003 e Crítica e coleção, em 2011. Em 2007 publica Tempos de pós-crítica: ensaios, livro que tem segunda edição completa em 2012. A edição traz, entre alguns ensaios, o Memorial do concurso para Professora Titular de Teoria da Literatura da UFMG, escrito em 1989, e uma entrevista em que traz importantes elementos de sua perspectiva teórica. Em 2010, Eneida lança Mário de Andrade e Henriqueta Lisboa: correspondências, trabalho com o qual alcança o segundo lugar no Prêmio Jabuti 2011, na categoria Biografia. Em 2014 publica, com a amiga-irmã Marília Rothier Cardoso, o livro Modernidade toda prosa.

Literatura comparada e transdisciplinaridade

Não podemos tratar da importância da professora Eneida Maria de Souza para o campo acadêmico sem nos determos em suas incursões transdisciplinares, atividades em que a literatura comparada se abre aos estudos interartes, à noção de literatura como campo expandido, aos diálogos com a cultura popular e a tecnologia. Muitas são as criações nesse sentido. Os estudos de piano realizados ainda em Manhuaçu contribuem para o ouvido atento à linguagem musical, aos acordes consonantes e dissonantes que surgem na aproximação de objetos de espaços e tempos distintos.

Deve-se salientar que Eneida foi das primeiras pesquisadoras no país a realizar detido trabalho sobre a literatura de cordel, tendo como base teórica a obra de Mikhail Bakhtin e Lévi-Strauss. Os conhecimentos da literatura popular contribuíram bastante para a realização da tese de doutorado sobre Macunaíma.

Em outubro de 2021, a mestre lança, pela Cepe Editora, Narrativas impuras, livro que apresenta ensaios que tratam de parceiros e parceiras de viagem como Mário de Andrade, Silviano Santiago, Roland Barthes, Jacques Derrida, Georges Didi-Huberman, Maria Luiza Ramos, Dirce Cortes Riedel, que abordam fotografias de Assis Horta, fotopintores do Ceará, produções do modernismo brasileiro. O volume traz ainda outros consistentes textos produzidos nos últimos vinte anos. Na última parte da publicação, Eneida apresenta reflexões sobre a própria trajetória, ressaltando interfaces existentes entre “experiência pessoal e desempenho profissional”. A relação entre a análise literária, a filosofia, a literatura moderna e a cultura popular sempre fizeram parte do horizonte desbravado pela ensaísta.

Em 1972, Eneida escreve instigante ensaio sobre a canção “Construção”, de Chico Buarque de Holanda. Segundo seu ex-aluno e posteriormente colega de trabalho, Antonio Sérgio Bueno,

A análise que Eneida publicou em 1972, de "Construção", de Chico Buarque, foi um divisor de águas. Primeiramente trouxe para o "espaço nobre" da Academia um produto da chamada "cultura popular". Em segundo lugar, a desmontagem crítica da "Construção" revelando-lhe uma estrutura em abismo (...) mostrou que esse mergulho dessacralizador nas articulações internas de um "objeto estético" não o profana, antes ilumina-o e realça-lhe a própria beleza. (BUENO, 2007, p. 14-15)

Segundo Silviano Santiago: "Sua análise pioneira de "Construção" (...) inaugura a ousada, carinhosa e infindável preferência por estranhos objetos de estudo" (SANTIAGO, 2012, p. 10).

Completa essas visadas, a avaliação do também ex-aluno, colega de faculdade e amigo próximo, Wander Melo Miranda. Para o professor:

Nos anos de 1970 tive aulas com ela de Teoria da Literatura. Sempre escolhia suas disciplinas em razão da qualidade. Ela trazia — e ainda traz — uma extrema conexão com o que está acontecendo no mundo. Levava para dentro da sala o que havia de mais novo na literatura, no cinema, na música, nas artes plásticas. Não era uma aula apenas sobre literatura. Sem falar no rigor teórico e na sensibilidade. (MIRANDA apud ALKMIM, 2013)

Os trabalhos de Eneida, como sabemos, transitam entre literatura de cordel, o cantador de cocos Chico Antônio, Aleijadinho, fotógrafos mineiros, fotopintores nordestinos, o filme Santiago, Carmen Miranda, Caetano Veloso, Chico Buarque de Holanda. A assídua frequência a shows musicais, cinemas, ballets, peças teatrais, exposições, museus ampliam o horizonte estético e intelectual da pensadora e fazem dela, mais que uma apreciadora, uma cuidadora das invenções do mundo.

O dom da partilha

Eneida conquistou, com a sua “lenta e amorosa descoberta do saber”, reconhecimento nacional e internacional. Entrou em diversos sistemas, criou parâmetros, mas teve coragem de romper paradigmas, inaugurar outras vertentes de pensamento, avaliar sobrevivências de antigas obras. Mesmo lidando com uma pluralidade de objetos, a ensaísta não se deixa levar pela superficialidade analítica. As investigações apresentam-se atentas, as reflexões, sistematizadas, o instrumental teórico mostra-se continuamente revisto e ampliado. Os trabalhos, dotados de agudeza argumentativa, revelam linguagem concisa, precisa, além de sensibilidade na elaboração de imagens conceituais. Os textos sempre almejam a clareza comunicativa, dado relacionado à preocupação da pesquisadora com a educação, com a troca de saberes. Essa característica está na origem do sucesso de sua produção junto a estudantes de Letras no país. Nesse sentido, ressaltam-se os livros Crítica cult, de 2002 e Janelas indiscretas: ensaios de crítica biográfica, de 2011.

Na atuação da mestre, percebe-se o questionamento das noções de fonte e influência pautadas por critérios positivistas e a abertura para relações especializadas, relacionadas a formulações de sentido proporcionadas pela recepção tardia do moderno. Segundo Rachel Esteves Lima:

Contrapondo-se à matriz interpretativa de base sociológica que associava subdesenvolvimento econômico a dependência cultural no cenário intelectual brasileiro, Eneida prefere romper com o pensamento dicotômico que embasa a base disfórica incorporada nessa proposta, valorizando os artistas e críticos que veem de forma positiva o trânsito entre centro e periferia e as diversas esferas de produção cultural. Aposta, assim, na antropofagia, no trabalho das vanguardas e no entrelugar como antídotos para a superação do mal-estar. (LIMA, 2021, p. 27)

Pela avaliação da vasta produção da ensaísta, conhecemos melhor a história do próprio pensamento do país na área de humanas, de linguística, letras e artes das últimas décadas.

O dom da amizade, o prazer do encontro, o gosto pelo compartilhamento de experiências e o incentivo aos jovens pesquisadores são traços da personalidade da professora. Não podemos nos esquecer do quanto cultiva os laços familiares. Amizades com colegas do tempo de estudante, com professores e alunos espraiam-se ao longo dos anos. Relações iniciadas no tempo de criança e adolescência, em Manhuaçu, permanecem muito fortes. Outras foram sendo geradas em seus caminhos pelo país e pelo mundo. Representando todos e todas, gostaria de lembrar, aqui, de diletos amigos e diletas amigas que também foram e são importantes colegas de estudo e trabalho: professora Vera Lúcia Andrade, professora Marília Rothier Cardoso, professor Renato Cordeiro Gomes, professor Wander Melo Miranda. Afetos e parcerias foram tecidos ao longo de muitas jornadas.

A minha admiração pela professora Eneida é imensa. Além de mestre, revela-se amiga dotada de generosidade e caráter hospitaleiro. De seus gestos não se ausentam a firmeza dos posicionamentos, os duros questionamentos intelectuais que nos possibilitam repensar os caminhos seguidos. De Eneida sou discípulo e dela busco, com humildade, herdar diversos aprendizados.

Prezados e prezadas, aqui está um pouco da Eneida, aqui está Manhuaçu, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Paris. Aqui está um exemplo da potencialidade criativa e intelectual do país. Já concluindo, gostaria de citar o último parágrafo do Memorial para Professora titular escrito pela teórica, em 1989. No trecho, Eneida exibe sua confiança em tempos melhores, revela a crença na arma da alegria e da esperança que porta e partilha com todos com quem convive. Cito a professora Emérita:

Diante do sentimento de desalento e desamparo, motivado pelo nosso atual momento cultural e político, conserva-se ainda um fio de luz interior, capaz de abrir as portas da percepção e escancarar as janelas do presente. (SOUZA, 2012, p. 121)

Salve Eneida, crítica de literatura e intérprete do Brasil! Salve a alta qualidade do ensino, da pesquisa e da extensão das universidades brasileiras. Salve a Associação Brasileira de Literatura Comparada! Que venham novas invenções, novas confecções de nossa costureira e estilista! Parabéns, Eneida, pelo Prêmio Tania Franco Carvalhal!

REFERÊNCIAS

BUENO, Antonio Sérgio. Eneida: a bela construção de um pensamento crítico. Suplemento literário de Minas Gerais. Belo Horizonte, n. 1307, 2007. Disponível em: <http://veredasecenarios.com.br/versao2008/index.php?option=com_content&task=view&id=30&Itemid=59>. Acesso em: 20 set. 2021.

LIMA, Rachel Esteves. O quodlibet de Eneida Maria de Souza: tradição, modernidade e sobrevivência de Narrativas impuras. Pernambuco. Recife, n. 188, p. 27, 2021.

ALKMIM, Paula. Perfil de Eneida Maria de Souza: na carruagem com Eneida. Diversa: Revista da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, n. 20, 2013. Disponível em: <https://www.ufmg.br/diversa/20/perfil-eneida.html>. Acesso em: 5 dez. 2021.

SOUZA, Eneida Maria de. Tempo de pós-crítica: ensaios. 2ª. edição (revista). Belo Horizonte: Veredas & Cenários (Coleção Obras em dobras), 2012.