Cristiane Marques Machado, Maria Luiza Berwanger da Silva
O presente estudo comparatista visa analisar sob o viés da Geografia Cultural, Humanística e Fenomenológica, focalizando no estudo de letras de samba, um fenômeno geográfico brasileiro contemporâneo que completa mais de 100 anos na cidade do Rio de Janeiro: a favela. Cantada pelo sambista, a favela é simbolizada, dessimbolizada e ressimbolizada, transformando-se em uma transfavela que, como parte da paisagem carioca, brasileira, nos representa, sim, sem contudo deixar de transgredir a própria geografia, expandido-nos para além dos limites do local e do nacional e redesenhando os morros cariocas com as tonalidades de fábula do lugar (BESSIÈRE, 1999). Se, na literatura, temos escritores que contribuíram para a composição de fábulas de cidades, regiões e/ou países, tornando indissociável sua relação com os lugares (como no caso de Dublin/Joyce, Sertão/Guimarães, Trópicos/Lévi-Strauss, Praga/Kafka e Lisboa/Pessoa), também é possível afirmar que se revela intrínseca a relação entre a favela e a produção musical dos sambistas. Do mesmo modo que ocorre na literatura, nas letras de samba, imaginário e realidade estão tão imbricados, que o referente passa a não ser mais necessariamente aquilo que se crê que seja. Nesse sentido, é possível afirmar que, se certos autores se tornaram autores de suas cidades, também os sambistas podem ser considerados autores da favela. Em sua fábula cantada ao som de cavaco, pandeiro e tamborim, pressupõe-se a impossiblidade da fixidez do lugar, uma vez que, por intermédio do samba, a favela se desloca e empreende travessias que vão do periférico ao centro, estabelecendo-se sua reinvenção e transmutação em Transfavela, Favela-Mundi, que repica, no ouvido do mundo, a voz dos bambas que nela vivem ou viveram de fato ou poeticamente.