Durante cerca de 450 anos, o personagem Thomas More e sua oposição a Rafael Hitlodeu foram anulados em boa parte das leituras de "A Utopia". Neste período, a obra foi geralmente interpretada a partir de uma supervalorização do discurso político do personagem Hitlodeu, como se este fosse um mero porta-voz do autor. Graças a esse tipo de leitura, no século XVII, More se torna, segundo muitos, um “reformista protestante avant la lettre”, e nos séculos XIX e XX, passa a ser visto como um dos precursores do socialismo. Essa imagem começa a ruir na segunda metade do século XX, quando os críticos da obra iniciam uma recuperação do caráter literário do texto. Isso é feito, principalmente a partir do estudo das dissonâncias no discurso de Rafael (SYLVESTER, 1977). Assim, em uma reviravolta surpreendente, nos últimos cinquenta anos a utopia de Rafael deixou de ser percebida como modelo de perfeição – ao menos entre os especialistas – e os defeitos no comportamento e pensamento de Hitlodeu, bem como o humor luciânico da obra, que satiriza ao invés de elogiar o filósofo e suas ideias, começaram a ser mapeados. Proponho, nesta comunicação, que a pioneira sobreposição dos discursos político e literário em “A Utopia” expõe, de maneira incomparável, o ponto fraco dos planos “perfeitos”: as contradições humanas.
Palavras-chave: A UTOPIA, THOMAS MORE, DISCURSO POLÍTICO, DISCURSO LITERÁRIO