Conforme atenta Henri Lefebvre em A Produção do espaço, há algo em comum entre o modo como as palavras são inscritas numa página de texto e o modo como os movimentos e os ritmos da atividade humana e não humana são registrados no espaço vivido. Essa constatação parece se contrapor a sugestão de Roland Barthes que, ao tratar do traço gestual do pintor Cy Twombly, repara: “ O traço—todo traço inscrito na folha—desmente o corpo importante, o corpo de carne, o corpo de humores; o traço não nos leva nem à pele nem as mucosas”. O que Tatsumi Hijikata, precursor do butô no Japão, com seu método de anotação de dança, denominado butô-fu, parece justamente questionar é: mas e se levasse? E se o traço na folha levasse à pele e às mucosas? Esta comunicação pretende girar em torno da hipótese de que através dos butô-fu é possível vislumbrar uma linha – errante – que perpassa o traço na página e segue em direção ao corpo, vivo, no espaço. Formulados entre 1970 e 1985 (período esse em que Hijikata deixou de dançar), em um total de dezesseis cadernos, os butô-fu não indicam passos a serem seguidos, mas compreendem uma cartografia de corpos, gestos e movimentos, produzidos a partir de um emaranhado complexo de colagens, que mesclam textos poéticos, citações literárias e imagens, com centenas de referências iconográficas. Trata-se, portanto, de um sistema completamente original, contendo uma rica gama de propostas teóricas que iluminam a relação complexa e dinâmica entre corporalidade e escritura. Nesse âmbito, os cadernos de Hijikata podem ser compreendidos como um suporte para a criação de um espaço fluido por onde se traçam linhas de errância que atravessam as fronteiras entre a página e o corpo, estabelecendo-se, portanto, através de um processo de escrita performática e gestual que não se encerra no formato do livro supostamente imposto pelo caderno, mas, conforme alude Derrida, se inscreve antes da letra, ou ainda, se inicia com o fim do livro. Nessa perspectiva, o caderno funciona como uma extensão do corpo, uma espécie de prótese, ou ainda um agenciamento, uma máquina de escritura que tem não apenas a página, mas o próprio corpo como o suporte de inscrição. Se é possível, a partir dessa noção alargada de escrita, compreendemo-la como a forma pela qual os viventes humanos e não humanos produzem toda a espécie de rastros e inscrições, nessa mesma perspectiva, pode-se questionar a afirmação de que Hijikata deixou de dançar nos últimos anos de sua vida, mas ao contrário, com a feitura dos cadernos, criou e efetuou uma escrita dançante, traçando suas linhas de fuga na vida, borrando as fronteiras entre o dançar, escrever e o viver.