Esta proposta de apresentação é um ensaio aproximativo entre o material de minha pesquisa de doutoramento, Profanações autobiográficas, e o livro Por que a criança cozinha na polenta, de Aglaja Veteranyi. Tomo como ponto inicial, e de suma importância, a conceituação de Philippe Lejeune (2008) sobre o conceito de autobiografia: “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade” (LEJEUNE, 2008, p. 14). A partir desse ponto, minha pesquisa (de um modo geral) segue um caminho de distanciamento para distintos modos como se podem narrar a vida e a experiência humanas. O objetivo é ir além da mera inclusão de “exemplos” e/ou gêneros dentro de um reservatório das formas cambiantes, que esse tipo de narração pode assumir. Para tanto a discussão tem estabelecido diálogo com o conceito de profanação, do filósofo italiano Giorgio Agamben (2007). Para Agamben, profanar é uma ação política que busca devolver o que está consagrado ao livre uso dos homens, ou ao uso comum dos homens. “Profanar significa abrir a possibilidade de uma forma especial de negligência, que ignora a separação, ou melhor, faz dela um uso particular.” (AGAMBEM, 2007, p.66). Dentro dessa perspectiva a pesquisa se interessa pelo uso da profanação por identidades e subjetividades minoritárias e/ou periféricas na constituição de atos autobiográficos. Uma vez que, sendo a autobiografia um dispositivo de poder associado à escrita individual sobre a personalidade de um sujeito branco, eurocêntrico e colonizador, os diversos usos operados por essas “vozes menores” abolem e cancelam as separações que a autobiografia, como sagrado, havia separado e petrificado. É dentro desse contexto que lanço meu olhar sobre o texto de Veteranyi. Nele a autobiografia não consiste, na verdade, no relato dos acontecimentos de uma vida, mas em um rumor profundo e secreto, de tentativa de articulação de uma experiência extrema, que só se torna perceptível na escrita. A voz-narrativa não é a voz de uma pessoa já adulta, interessada em dar sentido e revisitar/solucionar os traumas de sua experiência da infância. Aglaja dá voz a uma criança anônima que narra a história sem fazer distinção entre e sem hierarquizar o que é propriamente realidade e o que seria imaginação e devaneio. Minha proposta é, portanto, discutir o que pode ser audível dessa construção de subjetividade, isto é, o rumor autobiográfico dessa “voz menor”, à qual aproximo o conceito de devir-criança de Gilles Deleuze & Félix Guatarri (1997).
Palavras-chave: AUTOBIOGRAFIA, NARRATIVA DE CONSTRUÇÃO DO SELF, PROFANAÇÃO AUTOBIOGRÁFICA, AGLAJA VETERANYI