Durante as duas décadas de duração da ditadura (civil)-militar no Brasil (de 1964 a 1985) a produção literária não esteve alheia à reflexão e à crítica ao regime. Desde o prenúncio do golpe (a renúncia de Jango e a campanha pela legalidade em 1961), sobretudo a intelectualidade artística de esquerda se viu diante um processo gradativo de cesseamento de direitos e liberdades individuais, das percas das conquistas sociais que vinham sendo adquiridas de modo lento e dificultoso e do processo de rompimento com a esfera democrática e completa instalação de uma ditadura. Essa onda de reacionarismo gradativo teve, entretanto, dois grandes empuxos: o golpe de 1964 e o decreto do Ato Institucional número 05 em dezembro de 1968. Desde o início dos governos militares, é possível observar como as representações estéticas de protesto faziam paralelamente à crítica ao regime, um registro da própria atividade estética ou uma reflexão sobre ela. Como uma das primeiras manifestações desse duplo compromisso, temos o livro de poemas do amazonense Thiago de Mello, cujo poema título do livro “Faz escuro, mas eu canto” indicam o reacionarismo politico (‘escuro’) e o ato de escrever poemas (“eu canto”). Também as canções de Chico Buarque, sobretudo dos primeiros discos, trazem em suas letras a reflexão política par a par com a reflexão sobre o fazer estético, neste caso, compor canções ou tocar violão. As crônicas de Carlos Heitor Cony, publicadas em 64 e 65 e que representavam um certo refúgio para leitores contrários ao regime (como afirma Luís Fernando Veríssimo no prefácio ao livro O ato e o fato, que traz crônicas de Cony), apresentam, mesmo en passant, essa dupla reflexão. Entretanto, esse dobble bind se torna mais complexo quando o encontramos em romances produzidos durante o período. Existe uma quantidade significativa de narrativas cuja crítica ao período de exceção ocorre paralela a reflexão sobre a própria produção da narrativa. Desde o romance-dentro-de-romance que nos lembra o mise-en-abyme gideano e os labirintos ficionais de Borges, a narrativas desconjuntadas que atestam a tentativa e o fracasso na consumação do romance, passando por romances que num jogo de auto-espelhamento nos lançam num debate muitíssimo específico da escrita de si autoral ou transformam o romance num personagem da narrativa; apenas para citar algumas ocorrências. Em quaisquer das possibilidades, o contexto histórico da ditadura militar participa de modo significativo para a reflexão, para o êxito ou para o fracasso do romance ou do romance interno ao romance. Se a escrita de si pode ser considerada “um sintoma do final do século” (KLINGER, 2014), nosso objetivo é refletir sobre a forma como romances pós-ditatoriais brasileiros escritos durante a ditadura (civil-)militar singularizam (ou pulverizam) ou exploram as questões vivenciais do sujeito histórico e questionam o comprometimento com realidade histórica em narrativas cuja reflexão sobre o próprio objeto estético também é problematizado.
Palavras-chave: AUTO-FICÇÃO, ROMANCE DITATORIAL, ROMANCE PÓS-64, ESCRITA DE SI