O rap e o funk têm alguns elementos em comum e pertencem a uma mesma tradição oral, mas apesar de serem compostas oralmente, as letras de hip-hop são fixadas com a ajuda da escritura e gravadas em discos que se difundem nos circuitos comerciais. É difícil imaginar os raps sem um suporte que permitisse o registro gravado de suas longas letras. Os cadernos de Sabotage e as folhas soltas de autores como MV Bill nos apresentam o momento da produção no qual se mescla o oral e o escrito. Isto também pode acontecer com os MCs de funk. Nas letra do funk “Fala que é nós”, o poeta diz: “Peguei um papel e uma caneta pra mim compor um proibidão”. Entretanto, no caso dos temas do funk proibido, as letras não chegam a assumir uma forma fixa. E sofreriam muitas mudanças a cada apresentação, as quais supõem o diálogo direto com o auditório. Quase todos os funks deste período foram compostos para serem difundidos oralmente, sem pressupor seu registro em qualquer suporte, seja a gravação em CD ou a difusão escrita dos versos. Por isso as letras geralmente são curtas e com refrão. Muitas não têm mais que uma estrofe de quatro ou cinco versos. Esta produção foi composta especialmente para difusão em festas através de apresentações ao vivo. Trata-se de fato de canções narrativas que podiam apresentar uma extensão bem variável. Algumas, um pouco mais longas, narram em detalhes fatos como a tomada do Morro do Adeus ou trazem a biografia de um herói fora-da-lei. Outras, mais curtas, parecem surgir como iluminação do fragmento de uma vida ou parte de uma história já incorporada ao repertório. Essas letras mais pontuais sugerem a permanência de temas ou figuras. Muitas delas assumiram a forma do épico heroico. Com elas, a periferia disputa discurso, projetando seus próprios heróis. Com esse subgênero do funk, a favela passa a ter seus próprios Homeros. Não surpreende que um tipo de composição com tantos vínculos com um tipo de oralidade tradicional herde algumas raízes e até mesmo certos temas de alguns fragmentos homéricos. Os MCs são antes de tudo contadores de histórias e poderiam facilmente ser associados aos aedos gregos e aos cantadores populares da Idade Média. Como os antigos aedos, os MCs têm o dom de cantar os feitos da guerra para uma comunidade fechada. São recitadores e improvisadores que geralmente compõem suas próprias letras. Cantam, interpretam, gesticulam, assumem um personagem. Mas ao contrário da epopéia, embora o funk também frequente uma vasta coleção de temas e tratamentos bem conhecidos do público ao qual se destina, temos aqui um canto curto que serve a outras finalidades para além de cantar os heróis da comunidade. Essa música recupera, em parte, o pensamento da épica, bem como elementos da prática dos aedos, agora atualizados em tempos de Internet e cultura de massas. É isso o que pretendemos identificar nessas letras no presente estudo: elementos de uma “épica descalça”.